Quando Yamandú Costa cantou ao vento

Por Renan Bernardi

No início desse ano de 2020, antes do apocalipse tornar-se parte evidente e indissociável do nosso dia a dia, o prolífico músico e compositor Kiko Dinucci lançou o seu Rastilho, o segundo disco propriamente solo de sua carreira.

Esse trabalho foi marcado por uma sonoridade totalmente focada em violão e vozes, mas que rompia com qualquer padrão que esse formato – ou qualquer outro – tem na música brasileira. Desconstruindo o chorinho e o samba urbano e de terreiro com um violão que atacava ritmicamente ao mesmo tempo em que harmonizava e cumpria as melodias propostas, Kiko renovou as possibilidades de um instrumento acústico através da sua inventividade.

O lançamento de Rastilho teve um impacto muito considerável tantos nos nichos onde Dinucci, pelos seus diversos projetos (Metá Metá, Passo Torto, com Juçara Marçal, com Elza Soares e muita gente), já é reconhecido, mas também parece ter estourado algumas bolhas e ter impressionado um público maior pela criatividade e a potência musical que esse artista já apresenta há alguns anos.

Mesmo assumindo as suas referências em nomes emblemáticos do violão brasileiro, como Sérgio Ricardo, Gilberto Gil e João Bosco, uma relação, possivelmente indireta, que eu fiz com Rastilho foi com outro músico brasileiro que há muito tempo também renova as possibilidades do violão: Yamandú Costa, mais precisamente com o álbum Vento Sul, lançado em 2019, o único trabalho de canções do artista, cantadas por ele próprio em letras, em sua maioria, do grande compositor e letrista Paulo César Pinheiro.

Pode parecer simplório relacionar os dois trabalhos, como se fosse apenas pelo fato de serem álbuns de violão e voz. Pode parecer ainda mais aleatória essa relação quando se vê que os universos em que esses dois músicos frequentemente se apresentam e criam suas ligações são muito diferentes.

Mas isso, para mim, é segmentar e podar as possibilidades que têm os trabalhos de ambos os artistas, ignorando que o circuito em que eles frequentam não é o único elemento definitivo do tipo de som que propõem.

Vento Sul, assim como Rastilho, apresenta um violão brasileiríssimo, que ataca e dá identidade ao trabalho, acompanhado sempre de uma poesia também cheia da originalidade de nosso país. Essa rica soma que encontramos nesses dois trabalhos referenciam e renovam a música brasileira, mesmo com as técnicas e tecnologias focadas apenas em um mesmo instrumento.

E se ainda lhe parecer estranha a intenção de Yamandú em mergulhar no cancioneiro brasileiro, ainda mais como cantor desse projeto, é importante lembrar que a iniciação e a trajetória do violonista no mundo da música se dá, quase que totalmente, dentro da música popular, inicialmente com os cantos populares do sul, mas ao longo da carreira, intervindo em diversos estilos brasileiros e latino-americanos.

Para começar, antes mesmo de ser violonista, a primeira relação de Yamandú como músico foi justamente cantando na banda de baile da sua família, como ele fala em diversas entrevistas.

E por mais que comparem seu estilo, com toda a razão da referência, sempre com Baden Powell e Raphael Rabello, sua relação com o violão começou dentro da sua casa, ainda aos quatro anos de idade, quando seu pai abrigou o violonista argentino Lúcio Yanell, que acabou se tornando o mestre de Yamandú no conhecimento dos ritmos gaúchos de toda parte: chacareras, milongas, chamemés e diversos outros estilos que nascem na Argentina e se espalha, pertencendo ao sul do Brasil e ao Uruguay, formando essa região pampeana, que mesmo não delimitada pela geografia, acaba existindo culturalmente.

Só após amadurecer o seu violão no circuito dos festivais nativistas gaúchos foi que Yamandú passou a conhecer o universo do choro e se especializar nos mais diversos ritmos brasileiros e latino-americanos, tornando-se rapidamente uma referência mundial.

Esse virtuosismo e essa aclamação podem, muito indevidamente, distanciar a leitura que se faz sobre o seu trabalho, como se ele fosse mais voltado à música erudita do que à popular, quando é evidentemente o contrário.

Portanto, não podemos distanciar a potencialidade popular de um lançamento como Vento Sul: um álbum cantado do violonista mais reconhecido do mundo na atualidade. E então, entenderemos que essa aclamação do mundo não se dá somente pela sua extraordinária habilidade de execução e performance, mas também por sua íntima relação com o que há de mais popular e sentimental na música que faz, e que assim, representa também o seu lugar no mundo, ou como Yamandú disse, ele “leva o país no dedo”.

É interessante notar que, dessa maneira, além do artista levar a sua cultura popular para um público de música erudita, a sua inventividade musical o levou a se apresentar, solo e juntamente de outros músicos de habilidades impressionantes, para públicos consumidores da cultura popular do Brasil e do mundo todo.

E esse consumo é cada vez maior não somente pelos sentidos qualitativos de sua música, mas também pelo quantitativo. Quando ainda morava no Rio de Janeiro, Yamandú Costa tinha seu estúdio de gravação dentro de casa, o que o permitiu dar vazão para muitas das ideias que sua mente prolífica traduzia no violão.

Dentro desse universo atual, onde somos enxurrados de informações e de lançamentos diversos da música do mundo, esse álbum especial de Yamandú, que já sozinho nos entope com seus conteúdos, acabou se perdendo e passando meio batido tanto na discografia do artista, como também na atenção da crítica e do público em geral.

E é justamente esse equívoco dos nossos tempos que busco minimizar nesse artigo. Mas não pensem que estarei aqui forçando as atenções para esse disco. Não há a necessidade de forçar. Espero também que nem passe pela cabeça de vocês que Yamandú Costa buscou provar-se como popular com esse trabalho, pois como já explanei aqui, isso é algo que ele não precisa provar pra ninguém.

Mas então, por que falar sobre esse trabalho? Visto que até o próprio artista já anunciou que não pretende nem trabalhar a sua divulgação em shows, não querendo ser relacionado como cantor, mas sempre como solista.

Ora, justamente porque um trabalho dessa magnitude merece muito ser esmiuçado e comentado!

Então vamos falar sobre ele: tudo se inicia quando o violonista conhece o compositor Paulo César Pinheiro, ainda no começo dos anos 2000, momento em que Yamandú deixa o sul e fixa moradia no sudeste brasileiro.

Desde então, o compositor carioca logo se afeiçoou com as sonoridades que o gaúcho trazia, e como Paulo já havia composto com semelhantes do violão brasileiro, como os já citados Baden Powell e Raphael Rabello, pareceu-lhe então natural também colocar palavras nas coisas que Yamandú tocava.

Esse interesse veio de encontro com a vontade que Yamandú já tinha de trabalhar com canções. Então, logo as trocas de melodias e palavras entre os dois rendeu uma série de composições, dando origem, anos mais tarde, a esse extraordinário trabalho.

A faixa-título, que abre o disco, já mostra como Paulo se interessava pelo plano de fundo cultural que o solista do Rio Grande do Sul traz, e assim, busca transportar cada ouvinte para esses ambientes e comportamentos. Seguida então pela belíssima “Lágrima Vadia”, uma poesia certeira que encaixa a palavra com a melodia de uma forma que somente músicos desse calibre conseguem.

Dentro do álbum, existe apenas duas canções cujo letrista não é Paulo César Pinheiro. Elas são “Histórias Do Violão”, composta com Vinicius Brum, e “Rinha”, feita em parceria com Erick Navarro.

Dessa forma, o trabalho tem seu conceito muito bem definido, com as composições casando entre si, sempre nos deixando, com muita beleza, uma carga de reflexão, mesmo que de forma leve e, algumas vezes, bem humorada.

Entre as outras 8 composições de Paulo César para o álbum, destaco a dobradinha de “Melodia Sinuosa” e “Aprendizagem”, canções que falam justamente sobre esse convívio musical que existe ao redor de Yamandú, e que expressa muito bem o modo como esse artista de dimensões internacionais se porta com sua música e os seus parceiros: sempre receptivo, acessível e disposto a aprender e tocar mais e mais.

Sendo assim, vejo que Vento Sul retrata uma das facetas mais íntimas de Yamandú, que é justamente aquela que ele divide com os músicos do mundo inteiro, costurando e construindo as possibilidades sonoras com a amizade que cria nos ambientes musicais que frequenta desde que nasceu.

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