Simulacre e o Desejo de Lacrar

Por Renan Bernardi

Simulacre

Assumindo a persona da dragqueen Potyguara Bardo como forma de autoconhecimento, esta artista soma as suas influências da televisão brasileira, ritmos nordestinos, funk e reggae com house e transe music, onde ela busca lembrar também as origens queer dessas variações de música eletrônica, para então montar um trabalho musical que vai muito além dos estereótipos que – infelizmente – ainda existem ao se tratar do universo drag.

Com abordagens que envolvem experiências psicodélicas, física e tecnologia (da qual também envolve-se ao trabalho a sua experiência cursando Tecnologia da Informação na UFRN) com a linguagem do mundo virtual, principalmente das comunidades LGBTQI+, Potyguara lança seu primeiro trabalho completo em 2018.

Em Simulacre, a artista interpreta uma viagem psicodélica pelos efeitos de um cogumelo fictício chamado shimagic e aborda o lacre dentro dos efeitos/causas/comportamentos em que ele é interpretado pela sua comunidade, que é algo que, mesmo começado no mundo virtual, através dos saudosos (?) textões do Facebook, é também muito ligado ao rolê, ao contato, a sarrada.

O lacre, presente no nome do disco, surge dentro da própria comunidade LGBTQI+ como um termo usado para uma frase/ação/determinação que encerre uma discussão, fechando as portas para qualquer argumento adverso ao último apresentado. Algo que dialoga muito com as infinitas discussões que surgem no mundo virtual, onde o lacre então se polariza e, enquanto para uma parte essa discussão foi encerrada com tal argumento, para a outra ele sequer fez sentido e ainda permanece refutável. E assim a bola de neve, também infinita, vai aumentando.

Sendo um lacre algo que faz sentido para um lado, mas que para o outro ainda existe portas abertas para serem fechadas por ele, o próprio termo também se torna algo moldável em seus significados e, através da linguagem queer, se torna mais um dos termos-chave que complementam as suas narrativas.

Abordando o lacre como sua postura definitiva de autoconhecimento, em “Mamma Mia” Portyguara explicita que as questões existências são do seu conhecimento, mas desdenha delas frente às suas vontades mais carnais, a catarse à frente do mental, seja ela uma extravagância alegre ou uma explosão de raiva, e este é o lacre em sua essência.

Mas para muito além de qualquer superficialidade, o decorrer do álbum nos mostra que esse lacre surge para Potyguara como uma decisão saudável, uma plenitude que ela atinge depois de mostrar uma análise da nossa coexistência real/virtual, mas que, ao fim do álbum, percebe-se que é a não-existência a questão abordada.

Desejo de Lacrar

Como bem observou GG Albuquerque, o lacre, surgido na comunidade LGBTQI+, então “instalou-se no campo político — esquerda e direita — como um dispositivo para envaidecer e glorificar a argumentação incontestável, sem brechas.”

Sendo assim, no novo trabalho de Negro Leo lançado nesta sexta (17/07), chamado Desejo de Lacrar, o tema é discutido com o artista definindo-o da seguinte forma: “Lacrar é agir de forma insolente e revoltada. Vencer, se não de fato, virtualmente. Lacrar, na verdade, é o que nos resta”.

Com uma sonoridade que vem sendo trabalhada e desenvolvida pela banda composta por Sérgio Machado, Fábio Sá e Negro Leo desde Action Lekking (2017), em Desejo de Lacrar, produzido pelo próprio Sérgio, soma-se ao grupo o tecladista Chicão Montorfano para formar esse trabalho que nos mostra Leo agindo através de seus discursos proféticos, que muito me lembram aqueles presentes no filme O Abismo, de Rogério Sganzerla, para nos narrar, primeiramente na faixa-título que abre o disco, as tragédias já instauradas na nossa humanidade através de uma voz sufocada e de um arranjo sombrio, para depois chegar aos dias de hoje logo na sequência com a sensacional “Dança Erradassa”, onde toma como norte as ideias (erradassas) de terra plana para nos situar do abismo em que nos encontramos.

A partir de então, o lacre se torna o principal e definitivo assunto do álbum, onde, cada faixa de seu modo, retrata uma das interpretações desse conceito e das demais implicações dele em nossa vida, que hoje se soma e se confunde com a identidade que construímos virtualmente.

Na faixa “Makes e Fakes”, com letra de Tazio Zambi, o nome do álbum de Potyguara é citado ao falar “simulacre agridoce / medra na tela asceta / meme / de martelo e foice”, o que me parece deixar ainda mais claro que, enquanto Potyguara é o personagem que habita o lacre e fala dele nesta posição, a proposta de Leo é observar tudo que o envolve sem tirar conclusões disso, ou como bem acaba a letra da mesma canção: “só sei que ninguém sabe / vale o remate / tudo existe para acabar em lacre”.

Dançando erradasso (ou mesmo, errático) nas planícies do fim, Negro Leo segue os seus discursos sem explicitar um ponto ou defender uma visão, o álbum funciona como páginas de um jornal, que mesmo abordando o mesmo tema, traz em cada uma delas diferentes implicações e representações.

Para saber um pouco mais sobre como foram pensadas cada mensagem das canções desse álbum, o próprio Negro Leo fez um faixa-a-faixa, que está disponível no Trabalho Sujo.

Desejo de Lacrar pode ser encontrar completo no bandcamp, em faixas separadas no YouTube e também no player abaixo:

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