JASPER: a anti-heroína das drags de Xapecó

Nascida na região pantaneira do Mato Grosso do Sul e residente em Xapecó-SC desde 2010, Jasper é uma persona drag que se assume como uma celebração e crítica ao artificial e ao sintético que permeia o nosso dia a dia.

No dia 07/07, a artista lançou seu primeiro álbum de estúdio, intitulado Ilha de Calor. Gravado no Estúdio do Leo, em Xapecó, e produzido por Matheus Bonora e Francisco Faganello, o álbum mistura influências de hyperpop, pc music, trap, drill e funk paulista, utilizando dos elementos do pop para criar texturas que ao mesmo tempo em que estranhem o ouvinte, o convidam para dançar.

Tudo isso é amarrado por um conceito transgressor, futurista e digital, que comenta a sua vivência em Xapecó em vários aspectos, desde a geografia urbana sufocante, passando pelos preconceitos e violências que a população queer da cidade sofre, comentários de cunho ambiental e declarações pessoais sobre os temas.

Para saber um pouco mais sobre esse lançamento, os seus conceitos, processos e propostas, conversamos com a Jasper por vídeo chamada. Confira abaixo a transcrição da entrevista:

  • Como você relaciona o pensamento do álbum no envolvimento entre som e mensagem? Como as ideias e a sonoridade se conectam na sua proposta?

Jasper: Então, como eu tô sempre muito ligada ao artificial e a materialidade das coisas – como elas são feitas, como elas se relacionam, o contraste entre elas, os materiais: o plástico, o concreto, o vidro, a sílica – às vezes eu resumo muito as coisas ao nada. Eu resumo muito as coisas ao que elas são literalmente. E isso tem o lado bom e o lado ruim, né? Mas nesse projeto em si, eu quis fazer algo extremamente industrial, artificial, sintético, contrastando com algo visceral, com algo bem orgânico, mas também com o sangue, com as tripas, com aquela víscera, com aquele sentimento que vem de dentro, que é humano, que é gente, que é carbono. Eu fui muito inspirada no trabalho da Adriana Varejão pra decidir esse contraste, que ela faz em artes plásticas o concreto, o azulejo, contrastando com o sangue, com as tripas de dentro. O conceito dela meio que se une ao meu, das coisas que acontecem entre paredes, foi realmente muito inspirado no visual dela, pro sonoro meu. E realmente foi uma escolha bem pensada nos materiais da ambientação que esse álbum é.

  • Sua convicção quanto a identidade parece ser o carro chefe do Ilha de Calor, uma representação de sua força que além de afrontar, também propõe debates. Qual é a importância dessa sua imposição para falar dos temas que são abordados no álbum?

Jasper: Meu, se você não tem confiança de quem você é, mesmo que você não tenha certeza, ninguém tem certeza de nada, né? Mas se você não tem confiança de quem você é ou pode ser, da sua presença, do que você sente, do que você se identifica…você sabe do que você gosta! Então você tem que abraçar isso, porque isso faz parte de você e transforma você em quem você é. Então se você não tem essa confiança, não ajuda muito, sabe? Tipo, você existe! Você vai existir, as pessoas gostando ou não, então é preciso ter essa coisa unapologetic, sabe? sem pedir desculpa por ser quem é, você não pode ficar pedindo licença pra existir. Se você não se encaixa num padrão, não tem porquê você ficar se escondendo e ficar se limitando por causa disso. Isso só te faz mais diferente ainda. Então realmente, o existir sem pedir licença, o você-ser-você, sem pedir desculpa, é o básico pra você conseguir ir pra frente e ter uma vida melhor. É um pouco individualista, mas fazer o quê? A gente não tem certeza de nada, como eu disse antes, a gente não sabe nem se a gente existe, muitas vezes a gente se resume ao nada, sabe? Eu faço muito isso, me resumir ao nada. Já fiz isso tantas vezes que agora eu sei que eu consigo ser tudo, e tudo que eu sou e tudo que eu gosto me faz mais eu e não tenho vergonha disso, não tenho medo disso, e não vai ser outra pessoa, um avulso, que vai me dizer “não porque você não pode ser assim, você não pode fazer isso, você tem que ser assim, isso e aquilo”. Então nesse projeto, o existir sem pedir licença, sem vergonha nenhuma de ser, é o básico. E isso pede para o ouvinte, pede pra quem tá escutando: “vai! faz aquilo, usa aquilo, escuta aquilo, gosta daquilo, sinta atração por aquilo, sabe? Vai! seja você, não precisa ficar arranjando desculpa pra fazer alguma coisa, pra ser quem você é, pra se expressar, você só precisa ser! Sem dar satisfação pra ninguém, pra nada, não precisa receber dinheiro por isso, não precisa ter um encaixe no sistema capitalista, no sistema social ou comercial, pra você se sentir válido com isso. Você é válido desde o momento que você pega e fala: eu sou válido!”.

Quando conversamos pela primeira vez, você já deixou bem claro a sua intenção em propor algo que se usasse do pop ao mesmo tempo em que bagunça essa ideia, causando um ruído nessa estrutura e ainda sendo envolvente ao ouvir. Por que você preferiu seguir essa proposta? 

Jasper: Como artista, eu gosto muito da artificialidade das coisas, e às vezes até da futilidade de como as coisas são. O pop, ao mesmo tempo em que ele é extremamente comercial, e às vezes as letras são extremamente fúteis e sem nenhum conceito além do comum, do fácil de ouvir, eu acho isso muito interessante. O movimento da música experimental e hyperpop promovido pelos artistas em que eu me inspiro, usa muito dessas referências de tipo: fazer a música pop mais vazia possível, mais gostosa de ouvir e bem grudenta, sabe? E não é só por comercialidade, às vezes é criado um conceito em cima dessa artificialidade como crítica e celebração. E eu também gosto muito disso e acho interessante ter seguido esse caminho. Mas óbvio que eu não sou nenhum pouco uma artista dentro dos padrões pra seguir alguma coisa extremamente comercial, agora no início pelo menos, nem mesmo a Pabllo [Vittar] ou a Glória [Groove] ou artistas LGBTQIA+ que são mainstream, são realmente mainstream, sabe? A gente pode até chegar num nível mais alto e tal, mas a gente não viraliza, a gente não cria um espaço tãão grande assim. Tá chegando! Claro… mas eu realmente fui pro lado mais “foda-se”, eu quero fazer uma arte realmente de uma underground pras undergrounds, pras bichas que tão ali escutando bateção de panela, eu quero pra elas, sabe? Quero fazer pra gente! Eu não tô fazendo pra rádio, pro normativo me aceitar, tô fazendo pra agradar as queer, elas que gostam de mim e eu gosto delas, e é pra gente, sabe? É um grande presentão pra gente. Por isso eu quis fazer uma coisa inspirada no comercial, inspirada no pop, na farofona, mas realmente é uma bateção de panela, uma barulheira, um autotunezão, é uma coisa digitalizada, é o que as queer estranha gostam e é o que eu gosto e é pra gente. Se você não gosta, então não é pra você, vai escutar um sertanejo, vai escutar uma música de tiktok.  

Além de toda abordagem sonora e lírica, o seu trabalho também mostra uma atenção muito grande quanto ao visual que cerca o Ilha de Calor. Como você concebeu essa parte da sua obra? E como ela se relaciona com o restante do que é apresentado?

Ela é um grande amálgama do digital, também inspirado em moda camp na questão dos looks, uma moda exagerada e tal, no kitch. Mas assim, muita gente resume só a cor, né? “Ai a Jasper usa amarelo e preto”, e sim, eu uso e amo, são realmente as cores base do projeto, mas não são as únicas cores, né? Eu me inspirei nas cores da sinaleira de trânsito: o verde, o amarelo e o vermelho, aí dentro do projeto elas se relacionam, mas disso eu não vou falar muito porque quero que as pessoas tenham suas próprias interpretações. Mas, se for começar do ínicio, quando se trata dos visuais, sim, essas cores têm um papel muito forte, a questão ali do preto e do amarelo juntos serem usados como sinalização, como um aviso, como um sinal de perigo, aí entra a questão do aposematismo, que é aquele comportamento animal de ser o mais chamativo possível pra se defender, que é uma coisa que pessoas queer, marginalizadas e minorias usam muito, né? Uma defesa para o dia a dia. Aí depois entra a questão do urbano, muita referência ao graffit, que eu amo, sempre amei desde pequena, eu vi os grafites e as pichações e já queria fazer, e agora finalmente eu tô fazendo. E essa ambientação urbana, da rua, da noite, que é geralmente o espaço onde as queers, principalmente em Xapecó, existem, né? No rolê da Fernando Machado, rolês mais rua, que são mais acessíveis. Porque claramente as casas noturnas daqui não são tão acessíveis ainda. Essa coisa da luz do poste, amarela, que ilumina a gente por cima e faz sombras fortes. Tudo isso mesclado com o digital, com a edição bem kitch/camp dos memes, que é uma coisa que a minha geração usa muito por questão de humor também. Porque a geração Z lida muito com problemas sérios que acontecem com a gente através do humor, né? Porque a gente não têm muito ao que recorrer ultimamente, e aí a gente recorre muito aos memes, à ironia, piadas. Então, se for ver algumas das produções visuais que eu fiz pro meu instagram, tem muita referência a memes e tals, com aquela edição chapada de internet, bem na cara. Além da referência da arte digital, da realidade aumentada, da sobreposição do 2D com a foto do real, ao vivo. Mas pretendo fazer daqui pra frente mais coisas totalmente digitalizadas, também totalmente ilustradas, que eu trago comigo um gosto por ilustração de personagens, com exagero das linhas e silhuetas pras roupas. Então é realmente uma grande mescla do queer, do urbano, do digital. Como eu fiz design por um tempo, também juntei referências ali da linguagem visual das cores, do CMYK, dos materiais. E alguns visuais tem também a ideia de resumir as coisas ao básico, como por exemplo a sílica, a estrutura cristalina do concreto, aos hormônios, coisas que são ligadas a mim e pessoas que convivo e nossa ambientação, e tudo isso sendo posto bem em detalhes. Porque eu tenho até um problema em ver um pintura toda por exemplo, por focar muito em um detalhe, então eu usei disso a meu favor, acabei acumulando detalhes.

Quais são as próximas ações que você está planejando para o Ilha de Calor?

Jasper: Eu pretendo me organizar pra fazer mais materiais audiovisuais, clipes, fotos, ilustrações, coisas que eu mesma vou produzir. Pretendo também chamar artistas locais que eu considero muito e acho que tem muito potencial e que precisam desse espaço. Eu já não tenho espaço direito, mas já estou tentando criar espaço também para os outros, né? E essa é uma das coisa que tô tentando. Meu MBTI é ENFJ, então não tem o que fazer hahaha.

Antes de terminarmos a entrevista, Jasper quis deixar um recado final para encerrar, segue aí:

Jasper: Eu gostaria de dizer que Xapecó vai ter que me engolir. As pessoas vão ter que me engolir. Quem não gosta de mim vai ter que me engolir, vai ter que aguentar. É assim: ou você toma um copo d’água, ou você engole no seco. Eu vim pra ficar, eu não parei, eu não me aquieto, eu não sossego, eu gosto de fazer as coisas, eu falo na cara e não tenho paciência pra gente que não consegue me acompanhar. Ou me acompanha, ou fica pra trás. Eu tô tentando fazer de tudo pra abrir um espaço pra mim e pros artistas locais que eu sei que merecem muito mais do que essa cidade está oferecendo, e eu não tô vindo aqui com papinho de herói, né? Por favor, porque eu sou tudo, menos uma heroína. Eu sou mais uma praga do que uma heroína, né? hahaha Não posso garantir espaço pra ninguém, mas tô tentando. Quero criar o meu e espero ajudar pessoas com isso. Quero que, principalmente pela minha música, as pessoas se inspirem a fazer o mesmo, ser a mudança que elas querem ver, ser elas mesmas, poder falar: “Porra, eu posso ser nervosa também! Eu posso ser abusada, eu posso ser!”.

Deixe um comentário

Acima ↑